Refugiados africanos falam sobre experiências de racismo no Brasil: "Dói muito"
No marco do Dia da Consciência Negra, conversamos com três mulheres e dois homens negros a respeito das dificuldades de integração no país devido à discriminação racial.
Rio de Janeiro, 19 de novembro de 2019 - É impossível falar sobre o Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, sem abordar a história dos deslocamentos forçados no Brasil. O país que recebeu quase cinco milhões de africanos escravizados não empreendeu esforços significativos para promover a integração social, política e econômica da população negra após a Abolição, há 131 anos. As consequências dessa marginalização são sentidas e vividas até hoje, e não somente pelos negros brasileiros, como por aqueles e aquelas que também são forçados a se deslocar no século 21, mas em busca de refúgio.
No marco da data que estimula uma reflexão sobre o passado e o presente, conversamos com cinco pessoas refugiadas da África, dois homens e três mulheres, sobre ser negro no Brasil, suas experiências de discriminação e as dificuldades de integração na sociedade. Apenas uma não solicitou que o nome utilizado na matéria fosse fictício.
A descoberta do racismo
Para a maioria das pessoas que chegam da África em busca de refúgio no Brasil, a racialização da sociedade é uma novidade. Mais acostumados a diferenças étnicas, em vez daquelas estabelecidas pela cor da pele, os africanos costumam levar tempo para entender a influência que a pigmentação do corpo exerce nas relações sociais e nas estruturas da sociedade brasileira.
Entre os cinco entrevistados, cujas vivências no Brasil variam de oito meses a cinco anos, todos afirmaram que reconheciam a realidade do racismo no país.
"Existe um racismo sutil, é claro que existe. Não é algo evidente. Eu demorei a entender", contou a nigeriana Bola, que vive no Rio de Janeiro há três anos. "Sinto que fazem as coisas de forma indireta. A maneira como as pessoas agem ou olham... Você entende."
Com quase quatro anos de experiência no país, o congolês Nzoma ressaltou que o problema não era uma exclusividade nacional e se mostrou resignado.
"Aqui no Brasil existe racismo, sim. Eu sofro racismo quase todos os dias. No ônibus, no trem, na rua. Sabemos que não é algo de hoje e que isso existe no mundo inteiro. Mesmo assim, ficamos incomodados às vezes. Mas não tem o que fazer."
A também congolesa Mireille Muluila é Agente de Integração do Programa de Atendimento a Refugiados e Solicitantes de Refúgio (PARES) da Cáritas do Rio de Janeiro e, por isso, está acostumada a ouvir episódios de racismo sofridos por africanos. Para ela, não há dúvidas: "o Brasil é um país que tem uma questão mal resolvida com a população negra".
"O negro sofre muita discriminação aqui e é muito mal representado em todos os lugares, seja no trabalho, na política ou onde quer que vá. É muito triste isso, mas é a realidade do Brasil"¸ analisou a congolesa, que reside no Rio de Janeiro há mais de cinco anos.
A larga experiência brasileira de Mireille contrasta com a de Rol, que chegou ao país em dezembro de 2018. O refugiado de Serra Leoa, no entanto, não difere da congolesa no entendimento de que a cor da pele regula as relações sociais.
"Os brasileiros acham que os negros não são inteligentes, especialmente se são africanos. Se você é negro e africano, as pessoas acham que... Não sei como explicar... Sinto que não sou ninguém. Não nos respeitam."
Além de negro, africano
A percepção de que a origem africana também é um fator de discriminação no Brasil apareceu em todas as entrevistas. As reações à descoberta do preconceito e da ignorância nacionais em relação ao continente variam da surpresa à gozação, mas sem deixar de passar pela tristeza.
"Se você é africano, as pessoas nunca acham que você tem uma formação. A primeira coisa que pensam é que você é muito pobre e que nunca foi à escola"¸ relatou Lauren, de Uganda. "Quando digo que sou formada em Serviço Social, as pessoas ficam chocadas. No começo, eu ficava chateada, mas já me acostumei", completou a solicitante de refúgio, que está há 8 meses no Brasil.
Rol ainda está aprendendo a falar português. Como Serra Leoa foi colonizada por britânicos, seu idioma-mãe é o inglês. Isso não impede que ele passe por uma situação não incomum entre as pessoas refugiadas da África.
"Às vezes, quando veem que sou africano, me chamam de angolano. Nem todo negro no Brasil é angolano! Por que me chamam de angolano? Eu me sinto mal. Não deviam fazer isso."
Segundo Mireille, é duro viver sob o peso de um triplo preconceito: além de refugiada, ser negra e africana. Sua experiência de vida no Brasil, assim como as de tantos outros compatriotas que ela acompanha no cotidiano do seu trabalho, levam à conclusão de que os rótulos limitam as oportunidades no mercado de trabalho.
"Os empregadores pensam assim: se você é africano, se é negro, você é muito forte. O trabalho pesado é você que tem que fazer. Eles pensam que não estudamos. Pensam que as pessoas não têm profissão, não sabem nada. Só podem fazer faxina, serviços gerais. Isso é muito triste. Eu fico muito indignada com isso", reclama a congolesa, que é formada em Relações Internacionais. |
Escravização e animalização
A constatação de Mireille também é baseada em episódios testemunhados no setor de Integração do PARES Cáritas RJ. Um deles foi a história de um empregador que ligou para a instituição solicitando currículos exclusivamente de africanos para uma vaga de ajudante de carga e descarga. O argumento do empresário era o de que "os africanos são fortes". Nunca houve solicitação explícita de trabalhadores negros para vagas técnicas.
"Meus amigos refugiados (africanos) que vivem aqui me dizem que a maior parte dos empregos disponíveis para eles são de trabalho pesado", comentou Lauren, que ainda não conseguiu se inserir profissionalmente.
A psicóloga e pesquisadora social Andressa Maciel, que atende pessoas refugiadas em sua clínica e estuda as vivências de refugiados e solicitantes de refúgio acerca do racismo em sua pesquisa de mestrado em psicologia pela PUC-Rio, conta que muitos relatos ouvidos em ambos os âmbitos se referem a experiências de racismo no trabalho.
"O Brasil não é um país tão acolhedor como se diz. Dependendo da nacionalidade, as pessoas não são vistas como pertencentes, porque são consideradas, pelo processo colonizatório, como escravas. Ou são animalizadas, criminalizadas ou hierarquizadas. E essas relações aparecem no cotidiano", explicou a psicóloga, que também é voluntária no PARES Cáritas RJ.
Racismo no transporte
Nas entrevistas com os cinco africanos, também foram unânimes os relatos de preconceito no transporte público. A aproximação dos corpos brancos e negros que a exiguidade dos ônibus, trens e metrôs exige tem resultados muitas vezes traumáticos para aqueles que se sentem discriminados.
"Eu só comecei a pensar em racismo no Brasil quando estava em um ônibus e me forçaram a me levantar para que uma senhora branca se sentasse, embora eu tivesse mais de 60 anos e as pessoas que estavam nos outros assentos fossem mais novas", revelou a nigeriana Bola.
"Acontece muito de o ônibus estar cheio e haver um lugar vazio no meu lado, mas as pessoas passam por mim e não se sentam. Mesmo que o assento não seja preferencial. Eu acho engraçado", contou a ugandense Lauren. "Também uso muito o metrô e uma vez, há alguns meses, estava com a minha filha de dois anos e ninguém nos cedeu o lugar. Mas já vi que, quando mulheres brancas entram com criança ou quando são idosas, umas três pessoas se levantam. Isso não é muito bom."
A constatação de Mireille também é baseada em episódios testemunhados no setor de Integração do PARES Cáritas RJ. Um deles foi a história de um empregador que ligou para a instituição solicitando currículos exclusivamente de africanos para uma vaga de ajudante de carga e descarga. O argumento do empresário era o de que "os africanos são fortes". Nunca houve solicitação explícita de trabalhadores negros para vagas técnicas.
"Meus amigos refugiados (africanos) que vivem aqui me dizem que a maior parte dos empregos disponíveis para eles são de trabalho pesado", comentou Lauren, que ainda não conseguiu se inserir profissionalmente.
A psicóloga e pesquisadora social Andressa Maciel, que atende pessoas refugiadas em sua clínica e estuda as vivências de refugiados e solicitantes de refúgio acerca do racismo em sua pesquisa de mestrado em psicologia pela PUC-Rio, conta que muitos relatos ouvidos em ambos os âmbitos se referem a experiências de racismo no trabalho.
"O Brasil não é um país tão acolhedor como se diz. Dependendo da nacionalidade, as pessoas não são vistas como pertencentes, porque são consideradas, pelo processo colonizatório, como escravas. Ou são animalizadas, criminalizadas ou hierarquizadas. E essas relações aparecem no cotidiano", explicou a psicóloga, que também é voluntária no PARES Cáritas RJ.
Racismo no transporte
Nas entrevistas com os cinco africanos, também foram unânimes os relatos de preconceito no transporte público. A aproximação dos corpos brancos e negros que a exiguidade dos ônibus, trens e metrôs exige tem resultados muitas vezes traumáticos para aqueles que se sentem discriminados.
"Eu só comecei a pensar em racismo no Brasil quando estava em um ônibus e me forçaram a me levantar para que uma senhora branca se sentasse, embora eu tivesse mais de 60 anos e as pessoas que estavam nos outros assentos fossem mais novas", revelou a nigeriana Bola.
"Acontece muito de o ônibus estar cheio e haver um lugar vazio no meu lado, mas as pessoas passam por mim e não se sentam. Mesmo que o assento não seja preferencial. Eu acho engraçado", contou a ugandense Lauren. "Também uso muito o metrô e uma vez, há alguns meses, estava com a minha filha de dois anos e ninguém nos cedeu o lugar. Mas já vi que, quando mulheres brancas entram com criança ou quando são idosas, umas três pessoas se levantam. Isso não é muito bom."
No áudio abaixo, a congolesa Mireille conta um episódio de racismo no transporte público
Uma questão de saúde mental
Segundo a psicóloga e pesquisadora Andressa Maciel, ainda não existe uma literatura sistemática na academia sobre a relação entre refúgio e racismo no Brasil. No entanto, em sua experiência na clínica, na pesquisa e no voluntariado (ela organizou duas rodas de conversa sobre racismo com a equipe de saúde mental do PARES Cáritas RJ em 2019), abundam evidências de que o processo de integração do refugiado negro na sociedade brasileira é bastante prejudicado pelo racismo.
"Alguns deles disseram que existe um imaginário de que o Brasil é um país receptivo, miscigenado e que escolheram o Brasil - dentro do possível de uma migração forçada - acreditando que seria um país mais receptivo, mais amigável, mas chegaram aqui e não encontraram isso", destacou Andressa. "Já ouvi relatos de pessoas que até ponderavam em migrar novamente para outro país. Algumas falaram que não entendiam como algumas experiências de discriminação e racismo eram tão frequentes."
Lauren comprova o que diz a pesquisadora: "O que eu não consigo entender é que, com tantos negros brasileiros, ainda haja tanto racismo", disse.
"Eu não me sinto muito afetada, mas me preocupo com a minha filha. Ela me conta que amigos estão puxando seu cabelo, mas não ligo muito porque acho que as crianças são curiosas. Tenho medo é se ela terá as mesmas oportunidades que os brasileiros e também quais serão as consequências psicológicas disso tudo."
A mãe ugandense ainda tem oito meses de vida no Brasil. Na avaliação de Andressa, é possível notar uma diferença entre quem chegou recentemente e quem já está no país há mais tempo no que diz respeito à maneira como se lida com os episódios de preconceito.
"Às vezes, nos primeiros anos, as experiências racistas são deixadas em segundo plano, mas não são apaziguadas. Quando a situação financeira está um pouco melhor, um pouco mais estável, essas experiências racistas acabam emergindo. E aí é muito difícil lidar com isso, porque não tem como a pessoa trocar a sua pele, sair do seu corpo e deixar de sofrer as consequências desses rótulos racistas."
O impacto dessas experiências para a saúde mental dos refugiados e solicitantes de refúgio negros, e sobretudo africanos, é real, mas impossível de se mensurar. Tampouco há dados exatos sobre a presença dessa população no país.
Pelos números oficiais do governo federal, sabe-se que, até o final de 2018, os nacionais da República Democrática do Congo ocupavam a segunda posição no ranking de refugiados reconhecidos. Entre os solicitantes de refúgio, também há muitos haitianos, senegaleses, angolanos e nigerianos. A única certeza, no momento, vem das palavras da congolesa Mireille.
"É muito difícil viver isso e falar sobre isso. Acho que as pessoas têm que lutar para que isso acabe. Dói, né. Dói muito."
Texto e fotos: Diogo Felix