Depois de atuar na linha de frente da pandemia, venezuelano conquista o sonho de voltar a cursar medicina e entra em universidade pública no Brasil
Ao conhecer a história de José, um grupo de médicos lhe fez o convite para trabalhar como enfermeiro no MSF e agora ajuda o estudante a pagar as contas para se formar no país
Rio de Janeiro, 21 de junho de 2021 – Aos 23 anos, José Gregorio Rodriguez migrou para o Brasil. Lá, em 2016, em seus primeiros meses no país, teve que se calar diante da pergunta ‘foge de quem?’ durante entrevistas de trabalho. Trouxe consigo uma mala de roupas e outra de documentos e livros do curso de medicina interrompido na Venezuela. O que ele não sabia era que retomar os estudos por aqui seria mais difícil do que imaginava.
Foi em Belém, no Pará, que estabeleceu a sua primeira moradia fixa. A escolha da cidade se deu por ter ali alguns conhecidos. Precisou dormir na rua por uma semana, trabalhou em lugares que não lhe remuneravam corretamente e foi vender doces nos ônibus da capital para sobreviver. “Vender os bombons foi bom porque eu aprendi muito sobre a cultura do Brasil”, diz.
Foi em Belém, no Pará, que estabeleceu a sua primeira moradia fixa. A escolha da cidade se deu por ter ali alguns conhecidos. Precisou dormir na rua por uma semana, trabalhou em lugares que não lhe remuneravam corretamente e foi vender doces nos ônibus da capital para sobreviver. “Vender os bombons foi bom porque eu aprendi muito sobre a cultura do Brasil”, diz.
A cada entrevista, se via cada vez mais diante do preconceito para conquistar uma vaga de emprego, mesmo que tivesse o domínio de três línguas e o currículo ainda contasse com a faculdade já iniciada.
Para tentar contornar a situação, foi então aconselhado por um advogado na área de imigração a mudar o ‘status de refúgio’ e solicitar a residência temporária, mesmo que ambos soubessem a documentação não lhe protegesse da xenofobia. A advogada da Cáritas no Rio de Janeiro, Larissa Getirana, explica que, muitas vezes, a escolha pela residência temporária feita pelo imigrante vai mais pela "facilidade em que as instituições públicas e privadas têm em aceitar esse documento". Ou seja, quando a pessoa precisa acessar bancos, universidades, alugar um imóvel ou conseguir um emprego, a Carteira de Registro Nacional Migratória é mais reconhecida do que o protocolo de refúgio. No entanto, somente o ‘status de refúgio’ dá proteção ao refugiado, até mesmo no exterior. |
"O Brasil tem a obrigação de proteger essa pessoa. Às vezes, na prática, para as pessoas, isso pode ter menos sentido quando precisam de emprego e acessar os serviços", esclarece Larissa.
Enquanto fazia a transição da documentação, José conseguiu fazer um processo seletivo num programa de inclusão da rede de hotéis Accor. E não demorou muito para conquistar o seu espaço - entrou como zelador e, dois anos depois, já ocupava a posição de gerente operacional de eventos. “Não sabia que tinha talento para a hotelaria. Foi um mundo de oportunidades, sou muito grato aos meus gestores”, reconhece.
Em 2018, José tirou seu período de férias para viajar ao Rio de Janeiro e participar de um edital interinstitucional para uma vaga nos cursos de medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro ou da Universidade Federal Fluminense.
“Solicitaram uma série de documentos, o protocolo de refúgio, carta de motivação e nota de certificação do meu curso. O processo demorou quase dois anos e a primeira resposta da UFF foi negativa”, lembra. Ele não desistiu e entrou com um pedido de reconsideração.
Com o sonho de voltar a atuar na área da saúde, o venezuelano chegou a ingressar no curso técnico em Enfermagem na Universidade do Estado do Pará enquanto trabalhava no hotel, conciliando estudos e trabalho. No entanto, ele conta que não sabia que, diferentemente da Venezuela, o nível técnico ainda era considerado muito inferior ao que almejava. E mesmo com o diploma, seguiu na rede hoteleira, onde conseguia receber um salário melhor.
A virada do jogo
Até que chegou a pandemia do coronavírus no Brasil no início de 2020. Neste período, o ortopedista paulista Rodrigo Poli Okamoto e um grupo de médicos que estavam atuando na linha de frente do combate à Covid-19 se hospedaram no hotel em que José trabalhava.
O local virou o único ambiente em que os médicos transitavam quando não estavam trabalhando. Em pouco tempo, José ficou amigo deles e compartilhou sua história, e o sonho em voltar para a medicina.
“Eu fico pensando se é sorte ou acaso. Conhecemos o José, um cara extremamente proativo. Até que, um pouco mais adiante, recebemos um convite para atuar no Médicos Sem Fronteiras”, recorda Okamoto.
Até que chegou a pandemia do coronavírus no Brasil no início de 2020. Neste período, o ortopedista paulista Rodrigo Poli Okamoto e um grupo de médicos que estavam atuando na linha de frente do combate à Covid-19 se hospedaram no hotel em que José trabalhava.
O local virou o único ambiente em que os médicos transitavam quando não estavam trabalhando. Em pouco tempo, José ficou amigo deles e compartilhou sua história, e o sonho em voltar para a medicina.
“Eu fico pensando se é sorte ou acaso. Conhecemos o José, um cara extremamente proativo. Até que, um pouco mais adiante, recebemos um convite para atuar no Médicos Sem Fronteiras”, recorda Okamoto.
No começo, o ortopedista afirma que ficou preocupado em chamá-lo para um trabalho que seria temporário, já que ele estava estabilizado no hotel. Eles deixaram que José tomasse a decisão: ir atuar como enfermeiro ao lado deles na linha de frente ou continuar no seu trabalho. “Nossa, eu não acreditei. Pedi demissão e fui trabalhar como enfermeiro”, relembra o venezuelano.
Os laços entre os amigos ficaram cada vez mais estreitos. A cada nova ação do MSF, eles se encarregaram de levar José para embarcar para mais uma cidade e encarar um novo desafio. “Ele atuou mais na UTI, trabalhando bem na área que ele gosta dentro do hospital de campanha do exército”, comenta Rodrigo. |
A experiência durou sete meses. Paralelamente, o técnico de enfermagem ainda aguardava a resposta do processo seletivo para ingressar em uma das universidades cariocas. E quanto mais conhecia pessoas na área, mais aliados (e admiradores) conquistava. Uma das médicas da organização se uniu a ele, fez uma ponte na UFF e, junto a isso, José enviou outra carta para dizer que, desta vez, estava atuando na linha de frente do combate à pandemia do coronavírus no Brasil. Rodrigo e outros médicos também deram seus relatos.
Em novembro de 2020 veio a aprovação. “Foi muito louco. Em março eu saí de Belém, fui resgatado para trabalhar no Médicos Sem Fronteiras em Roraima, Manaus e São Paulo. Lá conheci vários médicos que me motivaram. É muito difícil entrar no Brasil e eu agradeço muito a eles”, se emociona José.
A condição para o ingresso na universidade foi que ele começasse desde o início, já que poucas matérias foram validadas. Mas como ele conseguiria estudar por seis anos em tempo integral?
Preocupados em apoiá-lo no curso de medicina, Rodrigo e o grupo de amigos fizeram uma vaquinha online para arrecadar recursos que pudessem ajudar nos gastos da mudança.
“Agora dependemos dos doadores mensais de um grupo que fizemos e sempre prestamos contas, deixamos bem transparente o aluguel, compras, quem está doando, quanto está saindo cada mês. É importante a regularidade para conseguirmos cobrir todos os gastos”, relata Rodrigo, que está disposto a arcar, junto com os amigos e outras doações, as despesas de José até o final da faculdade.
“Ele virou um grande amigo e a gente sabe que esse sentimento é recíproco, não existe a chance de abandoná-lo. A gente sabe que a medicina garante uma vida de qualidade, sem contar que ele vai conseguir ajudar os pais, tios e irmãos”, analisa Rodrigo. E adiciona:
"Estamos investindo numa pessoa de bom caráter. Trabalhar no contexto da pandemia, longe de família e amigos, fez com que a gente formasse um núcleo
que se segurava”.
José conclui: “Deixei o Médicos Sem Fronteiras com uma dor no peito. Penso em tudo que eu vivi até aqui. Transformei cada desafio em aprendizado, ainda mais atendendo outros imigrantes quando estava na linha de frente”.
Cinco anos depois de chegar sozinho no Brasil, encarar a fome, o preconceito e abrir mão - temporariamente - de seus sonhos, José voltou a estudar medicina graças a uma rede de apoio de amigos que viram o desejo e o talento do venezuelano, disposto a, através da medicina, cuidar e amparar brasileiros.
Se você também quer ajudá-lo, a arrecadação online ainda está no ar. Acesse aqui.